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quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Mais uma Noite


São 03 da manhã e ele ainda nem pregou o olho, já fazem mais de 24 horas sem dormir. Não é como se ele não quisesse, ele gostaria muito de dormir “de preferência para sempre”, pensa ele, contudo mal esse pensamento chega a sua cabeça ele o afasta, balançando-a freneticamente, enquanto dá um forte tapa em sua testa “Deus castiga pensar nestas coisas”, a voz de sua mãe soa alto e claro em sua mente, mesmo depois de tanto tempo.
A vida não é exatamente o que ele esperava quando era criança. Pode se lembrar dos sonhos que tinha, de como imaginava que sua vida seria diferente do que via na casa de sua mãe. Crescer sem pai foi foda, a pouca grana e as dificuldades financeiras também não ajudaram. Mas ele sonhava, sim ele sonhava com a possibilidade de uma vida diferente e isso o fazia seguir em frente.
No entanto a vida não é exatamente como se vê nas comédias românticas de Hollywood, às vezes está mais para um filme do Quentin Tarantino ou um livro do Stephen King e essa foi mais ou menos a balada de sua vida. Não acreditava em astrologia, mas se acreditasse diria que o universo conspirava contra ele, a coisa mais simples do mundo era um verdadeiro parto pra ele conseguir.
À primeira vista era um cara legal, sorriso fácil, brincando sempre e fazendo piada com tudo, a maior parte das pessoas achava que ele não tinha nenhum tipo de preocupação. O jeito e rosto que não aparentava a idade que tinha de fato contribuía muito para lhe dar um aspecto bastante jovial.
Detestava falar de si, mas era um ótimo ouvinte. Na verdade se sentia bem ouvindo os problemas alheios e quando lhe era pedido dava sua opinião, não poucas vezes ouviu dos outros: “Nossa é muito bom conversar com você, você sempre sabe o que dizer, me ajudou muito”. Ajudava a todos, só não conseguia ajudar a si mesmo.
Sua cabeça era uma verdadeira bagunça, um enorme misto de traumas, frustração, culpa, ressentimento e raiva, muita raiva. Raiva pelo seu pai que o abandonou, por sua mãe que não soube dar outro fim à raiva e à frustração dela e que descontava nele o agredindo física e psicologicamente, raiva de todos aqueles de alguma forma traíram sua confiança e acima de tudo, raiva de si mesmo por ser tão fraco.
Era solitário, não podia contar com ninguém, aprendera isso cedo. As pessoas simplesmente não se importam, mesmo quando perguntam se tudo está bem, elas perguntam esperando uma resposta positiva, não sabem o que fazer diante da negação, então pra evitar constrangimentos ele apenas sorri e diz “Beleza, tudo legal”, afinal de contas o que ela poderia fazer?
Já são 5 da manhã e mais pensamentos ruins vêm à sua mente: cada pessoa que o sacaneou, cada pessoa que o usou e cada uma que foi usada por ele (em sua defesa ele tem o fato de sempre ter sido sincero, nunca ter mentido pra ninguém, aparentemente algumas mulheres não tiveram a mesma consideração com ele).
Ele levanta pra ir ao banheiro, e deseja intensamente que ao invés de urina o que tivesse saindo de si fosse sua própria vida. Primeiro ele sorri, depois balança a cabeça pra espantar o pensamento: “Deus castiga” disse sua mãe. Deus, ahhhhh Deus...
Termina de mijar, e ao lavar as mãos dá de cara com o espelho do armarinho do banheiro. Olha para o espelho, mas não reconhece a imagem o que encara de volta, quem era aquele cara? Ele ergue as mãos como se quisesse tocar o rosto que o mirava no espelho e, olha que legal, o carinha do outro lado faz a mesma coisa, talvez seja tão solitário quanto ele... De repente se dá conta que é apenas a imagem de sua cara cheia de olheiras que está lá refletida, as olheiras fruto de uma série de noites de insônia, insônia essa que nem remédio estava dando mais jeito.
Os remédios... Ele abre o armarinho do banheiro e os encontra, vários vidrinhos, tarjas pretas e vermelhas. Dar um jeito nessa situação seria relativamente fácil, tomava uns 15 de tarja preta e mais uns 20 de tarja vermelha e pra poder descer usava a vodka que o aguardava no mini bar que tinha na sala, depois deitaria e dormiria pra nunca mais acordar e então nada mais importaria, pensou em seu enterro e em como não teria ninguém em seu último dia antes de servir de pasto para os vermes, e enquanto pensava ele sorria...
Entretanto o som do latido de um cachorro o despertou de seu devaneio, ele olha pelo basculante do banheiro e já é dia claro, o seu celular no quarto desperta indicando que ele não poderia se dar ao luxo de pensamentos tão agradáveis agora.
Entra no box, toma um banho, troca de roupa e vai comprar pão, desejando que algo aconteça e ponha fim em sua existência: uma bala perdida, um carro desgovernado, um meteoro caindo, um bueiro explodindo, um pombo fazendo cocô em sua cabeça e ele morrendo de traumatismo craniano, qualquer coisa (e ao pensar no pombo sorri de novo).

 No entanto nada acontece, ao chegar na padaria a balconista o saúda com um bom humor irritante para aquela hora da manhã: “bom dia, lindo dia né? A vida é realmente maravilhosa”. Ele a encara por um microssegundo pensando se deveria dizer a ela tudo que sentia, preferiu apenas retribuir o sorriso e dizer “É, a vida é realmente boa”... Afinal de contas era só mais um dia como outro qualquer...

Um comentário:

  1. Descrição clara de pensamentos de um deprimido. Depressão é tão difícil. Corre, escorre...é preciso ter cuidado.

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